top of page

Pura maldade??

Todos temos feridas. Umas maiores ou mais dolorosas que outras. As feridas são criadas aquando da exposição a situações stressantes, que de uma maneira emocional ou física criam a necessidade de nos defendermos. Essa forma de nos defendermos serve para sobreviver! A defesa pode ser tão importante quanto a própria vida – um filho que tem de fugir para que um pai não o mate –, ou pode ser uma integridade mais subtil e camuflada, como defender-nos de medo, zanga, culpa ou vergonha, resultado de situações como constante crítica ou rejeição.


Costumo dizer que não temos responsabilidade sobre a forma como aprendemos a relacionar nos connosco e com os outros. Normalmente estas tendências são apreendidas quando somos muito jovens. E enquanto crianças, poderemos discernir se tal atitude é melhor ou mais eficaz que outra? Espero que todos concordemos com “evidentemente que não”. Esta perspetiva habitualmente é eficaz para criar compaixão e enlutar o facto de termos sido “responsáveis” pelo nosso sofrimento. Importante é, a partir do momento em que temos o insight sobre como contribuímos para o sofrimento: decidirmos por uma atitude mais nutritiva para nós próprios, à luz dos nossos objetivos, necessidades e desejos. A partir desse momento, podemos fazer o nosso melhor para melhorar as dinâmicas com as pessoas à nossa volta. Podemos fazer terapia, compreender os nossos mecanismos improdutivos e arranjar outros mais eficazes.


O grande problema é que não só é difícil ganhar este insight, por estes comportamentos estarem tão profundamente enraizados no nosso “piloto automático”, como é difícil assumir que somos responsáveis não só do nosso sofrimento, mas também do dos outros. Como psicóloga compreendo que a grande maioria dos mecanismos aparentemente cruéis – mentir, atacar, controlar, obrigar, manipular –, dos meus pacientes não vêm de pura maldade ou sadismo: vêm da ferida. Em todo o caso, mais do que causam dor a eles próprios, causam também aos outros. E é claro que dói integrar isto.


Vendo as coisas por este prisma, talvez seja mais fácil sentirmos compaixão em vez de raiva (que dificulta muitíssimo o luto)… mas não me interpretem mal. Nós não devemos submeter-nos a maus-tratos.


A grande maioria das vezes, as dinâmicas podem mudar, habitualmente demoram o seu tempo, mas como podem imaginar, se a dinâmica de um casal é: a esposa que critica exaustiva e cruelmente o marido, o qual se zanga, elevando a discussão a níveis violentos; é evidente que se o marido, abandona a cena antes de se zangar, já está a introduzir uma semente de transformação à relação, pois a esposa é surpreendida com uma atitude que desconhecia e com a qual terá de aprender a lidar.


Mas há uma coisa que devemos manter em mente, e por mais que um psicoterapeuta seja resiliente, motivado e zele sempre pela evolução do paciente, temos de tornar claro que podemos fazer tudo isto e mesmo assim os outros à nossa volta podem não ter capacidade para acompanhar a nossa evolução. Podem ficar presos no automático ou querer continuar a alimentar a dinâmica antiga pois não se apercebem dos seus custos para eles próprios e para nós! Podem distorcer a nossa evolução pois não vai no sentido que eles querem (muito comum quando os pais enviam o filho para uma terapia, que em vez de se tornar um aluno brilhante e castrado, se rebela). Podem simplesmente escolher continuar a reproduzir os mecanismos aparentemente cruéis…. Entre tantas outras possibilidades!


Acho que será neste ponto, depois de tanto esforço da nossa parte em transformar a dinâmica, desta viagem ao nosso ser e integração da nossa responsabilidade para o nosso sofrimento e o dos que privam connosco, e que ao fim de tantas tentativas continua o sofrimento, devemos tomar a decisão: continuamos a tentar; aceitamos radicalmente que o outro não tem mais recursos e mantemo-nos na dinâmica aprendendo a dessensibilizar a dor (não sou fã em relações interpessoais, mas pode ser útil para situações de trabalho precárias que passam a assumir um caráter temporário em vez de interminável), ou então….. está na hora de deixar ir!


É muito nobre querermos evoluir, e transformar a dinâmica com os outros que nos são queridos não só pela satisfação das nossas necessidades, mas também pelas deles. Mas deixem as “análises” para os psicoterapeutas que são pagos para isso e abandonem as ruminações.



Vivam uma vida plena e feliz. Junto daqueles que nutrem o vosso melhor, que vos acolhem quando assumem a neurose, e que compreendem que todos os dias evoluímos para esse melhor.

 
 
 

Comments


Commenting on this post isn't available anymore. Contact the site owner for more info.
  • Preto Ícone Instagram
  • linkedin
  • facebook
  • logo-doctoralia-turquoise-rgb_edited
bottom of page